Os filhos respondem por dívidas trabalhistas dos pais idosos com cuidador quando não residem na mesma casa?

Em 06 de maio de 2020, a 5ª Turma do TST, no processo RR-11036-97.2018.5.03.0099, decidiu que filho de idosa não responde por dívida trabalhista com cuidadora, basicamente pelo fundamento de que, no caso concreto, o filho da idosa que admitira a reclamante não residia na mesma residência de sua mãe, em que ocorria a prestação dos serviços, era mero administrador dos bens de sua genitora, restando rechaçada a tese lançada pelo Juízo de origem que o primeiro réu era o chefe da família.

Assim, considerando que o filho da contratante não residia com a mãe e era apenas o administrator do patrimônio da genitora, a 5ª Turma do TST, com base no artigo  da Lei Complementar nº 150/2015, manteve a decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região no sentido de não haver responsabilidade solidária do filho da idosa que contratara a cuidadora.

Passa-se à análise jurídica do caso.

A decisão fundamentou-se, essencialmente, na interpretação do caput do artigo  da Lei Complementar 150/2015 com o seguinte teor:

“Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana, aplica-se o disposto nesta Lei.”

Segundo a professora Volia Bomfim[1], referido dispositivo cometeu o mesmo equívoco do artigo 1º da revogada Lei 5.859.1972, ao fazer referência ao trabalho prestado “no âmbito residencial”, uma vez que o trabalho exclusivamente externo pode ser caracterizado como trabalho doméstico, como são os casos de motoristas, seguranças, pilotos, acompanhantes ou enfermeiros em hospitais e casas de repouso, de modo que o correto seria a adoção da expressão “para âmbito residencial”.

E não há dúvidas de que o motoristas, seguranças particulares, pilotos de avião, acompanhantes ou enfermeiros em hospitais ou casas de repouso que prestam serviços fora do âmbito residencial sejam empregados domésticos.

De igual sorte, assim, como a interpretação do artigo  da Lei Complementar 150/2015 não deve se limitar aos serviços prestados no âmbito residencial, mas sim para o âmbito residêncial, deve-se abranger os beneficiários diretos dos cuidados dos idosos, ainda que eventualmente não residam no mesmo imóvel dos pais.

Nesse sentido, os artigos 229 e 230 da Constituição Federal preveem que a família deve amparar as pessoas idosas, preferencialmente em seus próprios lares, nos seguintes termos:

“Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”

“Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

§ 1º Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares.”

Estatuto do Idoso, que regulamenta referido dispositivo, estabelece em seus artigos , § 1º, V e 11 e 12:

“Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

§ 1º A garantia de prioridade compreende:

(…)

V – priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de manutenção da própria sobrevivência;”

“Art. 11. Os alimentos serão prestados ao idoso na forma da lei civil.

Art. 12. A obrigação alimentar é solidária, podendo o idoso optar entre os prestadores.”

Da mesma forma, o artigo 1.696 do Código Civil dispõe que “o direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.”

Da leitura de tais dispositivos depreende-se que os integrantes da família, especialmente os filhos, têm o dever jurídico de cuidado dos idosos que a integram com base na dignidade da pessoa humana e na prioridade familiar, tal qual ocorre com a criança e o adolescente.

A doutrina especializada ensina que:

“De maneira semelhante à criança e ao adolescente, também a pessoa idosa foi alvo de tratamento constitucional especial. O art. 230, caput, tem cunho fortemente protetor ao considerar como dever de todos – família, sociedade e Estado – agir em defesa da dignidade e do bem-estar das pessoas idosas e garantir sua participação na vida comunitária. Trata-se do reconhecimento de uma fragilidade que necessita, demanda e merece o amparo da coletividade, estabelecendo-se a propiciação de um envelhecimento digno às pessoas humanas como um compromisso de caráter constitucional.

O antigo enfoque jurídico patrimonial, produtivo e exclusivamente econômico que preponderava no sistema impedia que o idoso ocupasse um lugar relevante na ordem jurídica e social, uma vez que, geralmente, se encontrava já do lado de fora da cadeia produtiva. Tal lógica eminentemente produtivista foi interrompida pelo legislador constitucional de 1988, o qual, ao estabelecer que o centro do ordenamento jurídico fora ocupado pela dignidade da pessoa humana, reverteu o quadro patrimonialista que até então preenchia o direito privado. Na materialização da dignidade da pessoa idosa, portanto, estão sendo valorizados aspectos de outra ordem, tais como a convivência intergeracional, a preservação da memória e de identidades culturais, a transmissão das tradições e dos costumes às gerações mais jovens. A lógica produtivista deixou de determinar todas as prioridades, do ponto de vista jurídico, e as relações de índole existencial puderam instalar-se em seu lugar”.[2]

Em síntese, cuidar dos idosos e lhes prestar assistência social, afetiva e financeira são deveres de toda a família, preferencialmente em seus próprios lares, seja para garantir a convivência intergeracional, seja para os necessários cuidados do dia a dia e afazeres domésticos.

E eventual delegação a terceiros, com ou sem remuneração direta do empregado cuidador pelos filhos do idoso, não os exime do dever de cuidado, passando a responder pelas obrigações financeiras decorrentes dessa delegação, ainda que a contratação tenha sido realizada pelo próprio idoso.

Nesse sentido, pode-se defender que há vínculo de emprego com a entidade familiar em sentido amplo, abrangendo os filhos como empregadores, ainda que não residam no imóvel dos pais idosos, e não apenas com o signatário da CTPS, exatamente porque todos os membros da família se beneficiam direta ou indiretamente dos serviços de cuidado delegado a terceiros.

Por isso, diversamente da conclusão do acórdão em comento, conclui-se que toda a família é empregadora, não importando o fato de residirem momentânea ou definitivamente no mesmo local ou até mesmo em cidades distantes, respondendo solidariamente pelas obrigações decorrentes do contrato de trabalho do cuidador.

Verifica-se, todavia, que o aresto em comento não enfrentou a questão jurídica do dever de cuidado dos filhos para com os pais idosos, limitando-se a interpretar a literalidade da expressão “no âmbito residencial” do artigo  da LC 150/2015, de modo que há muito a se debater sobre o assunto.


* Juiz Titular da Vara do Trabalho de Mirassol D’oeste, TRT da 23ª Região. Mestrando em Função Social do Direito e especialista em Direito do Trabalho. Foi Oficial de Justiça por 4 anos no TRT da 15ª Região. Coautor do livro “Manual Estratégico de Recuperação Judicial: Impactos no Direito e no Processo do Trabalho – Teoria e Prática”, Cuiabá: Editora VersoReverso, 2021.

[1] CASSAR, Volia Bomfim. Direito do Trabalho: de acordo com a reforma trabalhista. 16ª ed. Ver. e atual. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo, METODO, 2018, pág. 351.

[2] CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina:, 2013, pág. 4655.

Replicado a partir de: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/os-filhos-respondem-por-dividas-trabalhistas-dos-pais-idosos-com-cuidador-quando-nao-residem-na-mesma-casa/882872056